15 de jan. de 2012


INFÂNCIA PERDIDA
A animação TOY STORY 3 resgata os sentimentos puros da criança, mas também nos remete à sensação do abandono do gozo infantil rumo à vida adulta

por Eduardo J. S. Honorato e Denise Deschamps



De maneira cada dia mais evidente, trazemos a sensação da lembrança da entrada do cinema em nossas vidas, da filmografia que cada vez mais cedo chega à possibilidade de representação de cada ser. A indústria cinematográfica investe pesado nas produções voltadas para o público infantil, seduzindo a nova geração com menos idade para essa forma de expres­são tão elaborada.

Cada um de nós pode se lembrar com emoção de uma das primeiras vezes em que foi levado para assistir a um filme na telona. Foi sempre de alguma forma impactante, quase tanto como os poetas descrevem a primeira vez que se avista o mar.

Tivemos agora na entrega do Oscar 2011 um repre­sentante deste setor que foi um forte concorrente, e para muitos críticos de cinema, seria o favorito: a animação Toy Story 3, que trouxe um debate em torno da vivência da di­versidade, do crescimento, do desamparo e do desapego. Temas tão atuais em nossa discussão de civilização. Lidar com o excluído deste lugar, o que marca a diferença, ou tentar assimilá-lo, na tendência pós-moderna, pasteurizan­do seu conceito no sentido do aniquilamento. Para pensar esses temas e aprofundá-los, indicamos a leitura do livro de Joel Birman, Mal-Estar na Atualidade.

Como toda a produção humana, o cinema traz também os dois movimentos básicos da cultura, ou seja, o do progres­so e o do retrocesso, dos polos de avanço e dos polos conser­vadores. Mas nos vemos diante de perguntas que envolvem toda a capacidade de captura que está sempre inserida no modelo da cultura hegemônica. Estas não podem deixar de assaltar nossas mentes. Desta forma, indo a outro extremo de pensamento, levanta-se uma reflexão a respeito disso, com foco nas notícias que hoje recebemos dos conflitos em curso no Oriente Médio. A potência de conduzir ideologias é mar­cante no curso do noticiário. Seria menos intensa ao formular animações voltadas ao sujeito em formação, a ser moldado dentro de toda demanda dos modos nos quais opera essa cultura? Então, como di­riam nossos avós, seria bom “manter um olho no padre e outro na missa”, ou ainda diriam os poetas da liberdade “é preciso estar atento e forte”.

Nem toda angústia deve apenas ser banida ou domesticada, e muitas delas são o caminho pelo qual esse sujeito lidará com seus impedimentos e aprisionamentos



Woddy e Buzz Lightyear, são os bonecos de Andy. Juntos eles buscam sempre a união do grupo de brinquedos e resolverem os impasses da turma

Temos a noção de que filhos encaminhados (leia-se adaptados às exigên­cias da civilização) serão sujeitos mais bem-sucedidos e felizes. Essa crença é respaldada a todo o momento, mesmo que os sujeitos adultos que a formulem sintam-se totalmente incapazes de expe­rimentar a tal da felicidade, substituída nos atuais dias por aquilo que muitos teóricos chamam de “mais gozar”. Aproximamos, com a melhor das intenções, esse sujeito em plena vivência do seu de­samparo fundamental, a uma ilusão aos moldes do livro Admirável Mundo Novo (leia sobre este best seller na coluna Divã Literário). Tudo o que transborda, esca­pa, formula um discurso fora do tom, é amainado, capturado em nome do bem-estar. O estar de quem ou do que mes­mo? A ordem da qual o boneco espacial Buzz, alterado em seus impulsos, acabará no filme como guardião.

Ganhou o Oscar um filme que fala sobremaneira na capacidade de superação. Como muitos críticos pontuaram, o vencedor usou a velha e conhecida fórmula cinematográfica, mas nem por isso menos brilhante ou tocante. O longa O Discurso do Rei fala da capacidade de superação, ou ainda, em outro pensar, no quanto na verdade somos todos iguais, sujeitos em nossas fragilidades e desamparos, fazendo do caminho da vida a estrada do encarar isso, da capacidade de assinarmos com alguma singularidade nosso fio histórico. Em certa medida esse filme chega a ser mais pueril que Toy Story 3. Brincando como criança, ele acaba por convidar a permanência na singularidade, e assim, forma cada um em uma coletiva dança. Essa coletividade que remete ao ser social do qual Freud já nos chamava a atenção no instigante texto Psicologia das Massas (grupos) e Análise do Ego, o ser que Birman destaca sobre sua premente necessidade na atualidade quanto ao aspecto: “Esta tensão entre o eu ideal e o ideal do eu funda o sujeito, delineando então, de maneira estrutural, o horizonte possível de seus movimentos”. Para quem não tem intimidade com os conceitos da Psicanálise, a afirmação de Joel Birman refere-se à possibilidade de construção de ideais coletivos (ideal do eu) como a saída para a vivência narcísica (eu ideal) que marca o sujeito contemporâneo.

voltemos então um pouco para a nossa formulação inicial e pensemos que, mesmo diante desta possibilidade, ao pensar em algo que marca a vivência desses ideais, devemos tomar cuidado para não acabarmos capturados no discurso de permanente gozo e felicidade, algo que remeterá à busca insana que nos atravessa e varre para longe concei­tos fundamentais em Psicanálise, como “frustração”, “adiamento da gratifica­ção” e a noção de “sintoma” como a de uma “formação de compromisso”.

Toy Story 3 nos lembra de alguma maneira que nem toda angústia deve apenas ser banida ou domesticada, e que muitas delas são o caminho pelo qual esse sujeito lidará com seus impedimentos e aprisionamentos. A marca do narcisismo pode ser exatamente a grande chave que fecha a cela ou a possibilidade do lado de fora. Ao fazer isso de maneira bastante lúdica, essa animação remete ao sujeito adulto o encontro de seus fundamentos, uma viagem à sua “infância perdida” ou às suas ilusões perdidas. A marca do real, inscrita pelo coletivo, lan­ça esse sujeito à possibilidade de inscrever-se no longo fio ontológico.

Ainda pegando carona em Birman, diríamos: “O social tem de seduzir o sujeito para que este possa ser despertado de seu sono sem imagens, de forma a ser empurrado para o carrossel do sonho e do devaneio. Se isso não se apresenta ao sujeito, este não pode então pender para o pólo autoritário, ficando, pois, restrito e mortificado no pólo narcísico de seu ser”.

TUDO O QUE TRANSBORDA, ESCAPA, FORMULA UM DISCURSO FORA DO TOM, É AMAINADO, CAPTURADO EM NOME DO BEM-ESTAR. O ESTAR DE QUEM OU DO QUE MESMO? A ORDEM DA QUAL O BONECO ESPACIAL BUZZ, ALTERADO EM SEUS IMPULSOS, ACABARÁ NO FILME COMO GUARDIÃO

Ficará, então, apenas lambendo seus brinquedos, como a fase inicial da creche em que nossos personagens se veem confinados. Ou fechado em sua mágoa, como o personagem do grande urso, aprisionado na necessidade de controle e comando.

O personagem Woody, em sua cons­tante marca de inscrição na realidade, desde o primeiro filme da trilogia, chama ao grupo para esta questão. Não pela união que apaga a diferença, mas sim pela potência que cria o encontro de forças e inscrições complementares (muitas vezes antagônicas). De alguma maneira, crescemos e saímos da fábula maniqueísta para a dialética que marca a construção freudiana. Buzz, o ingênuo sujeito apegado a uma concepção congelada do seu ser, faz o fiel da balança ao lembrar que nem só de real vive o homem. Seus sonhos devem partir de uma noção construída de identidade que caminha em di­reção à possibilidade de simbolizar, sob o risco de perecer, caso permaneça apenas atado ao seu narcisismo.

Neste novo filme, o terceiro da série, a questão daquilo que identifica o sujeito diante do seu mundo vem de forma marcante. Woody e seus amigos trazem a questão como sua identificação: o fato de ser o “brinquedo de Andy” não abre espaço para aceitar outro lugar como sendo o que os identifica. Para Woody, isso é definitivo e fica bem colocado quando, ao ver seu novo lar (a creche), que à primeira vista parece o paraíso, se nega a envolver-se. Começa então a aventura de nossos heróis. Cada um im­prime sua identidade nas escolhas que faz a partir do evento. Subjetividade em questão. O lugar do herói seria apenas no imaginário?

 Ironicamente, o filme ganha como melhor animação, mas o lugar de melhor filme fica para o mundo adulto, no resgate das inseguranças que estão inscritas na “posterioridade” em o Discurso do Rei agora proferido.

Talvez possamos pensar, a partir de Toy Story 3, na representação do que acompanha a saída definitiva da infância, simbolizando a maturidade em sua juventude, apresentando-se como uma aquisição e, ao mesmo tempo, como profundo sentido de perda, como é tudo aquilo que marca essa fase. O deslumbramento e a atração pelas novas aventuras, o medo que pode beirar muitas vezes uma fobia paralisante, a entrada da sexualidade adulta como podemos ver na descoberta do boneco Ken ao encontrar sua parceira, Barbie. Há muito de desencanto na saída da infância! É a certeza do desamparo que prepara o sujeito para a grande jornada das realizações da maturidade, marcando com intensidade suas relações com seus novos (velhos) objetos, como um túnel do tempo sem marcas definidas. Porque nenhum sujeito pode crescer sem carregar com ele alguma fração da potência criativa da criança que foi. Trará isso e colocará em suas marcas no mundo. Senão, ao contrário disso, tudo o que lhe restaria seria a inscrição sem desejo, longe da autonomia que marca o ser desejante.

O DESLUMBRAMENTO E A ATRAÇÃO PELAS NOVAS AVENTURAS, O MEDO QUE PODE BEIRAR MUITAS VEZES UMA FOBIA PARALISANTE, A ENTRADA DA SEXUALIDADE ADULTA COMO PODEMOS VER NA DESCOBERTA DO BONECO KEN AO ENCONTRAR SUA PARCEIRA, BARBIE


O filme tira lágrimas até dos corações mais valentes, porque leva a um sentimento de nostalgia da infância perdida. Para as crianças, de alguma maneira irá fazê-las sentir a importância do mundo que estão construindo, até que possam um dia, assim como Andy, dirigir um carro partindo em sua autonomia para a grande aventura que é viver, e que possam então ir com seus brinquedos cuidados, e sem a amargura do grande urso Lotso.

O que seriam dos nossos amigos se não tivessem vivido toda a aventura que acompanhamos? Teriam chegado até sua nova vida? Como seriam eles se permanecessem guardados no sótão? Para que os movimentos da vida aconteçam, é preciso ter certa saudade da infância.


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