18 de mar. de 2009

COMPORTAMENTO - FAMÍLIA

A criança como agente de mudança na família
Maria Tereza Maldonado
Mestre em Psicologia pela PUC/RJ
"As crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa."
(Fernando Pessoa)
enato olhava, embevecido, para Fátima, sua filhinha de três meses; ela olhava bem nos olhos do pai, e fazia sons que o enterneciam e o alegravam; falava com ela, que se mexia, virava o rosto, tornava a encará-lo, emitia novos sons. E, assim, a comunicação amorosa entre pai e filha prosseguiu por mais algum tempo.
Fátima foi adotada por Renato e Simone com dois dias de nascida, depois de quinze anos de espera e tratamentos infrutíferos que mesclavam esperança e frustração. A escolha do caminho da adoção, a vinda de Fátima e a construção do amor que não depende da biologia fizeram nascer em Renato e Simone novas possibilidades de ser. O espaço da maternidade e da paternidade, na adoção, é um entrelaçamento de sofrimento e esperança: há uma criança que foi abandonada ou doada, à espera de uma família que a acolha; há os adultos que adotam, em sua maioria, por não terem conseguido a gravidez ou, em alguns casos, por se sensibilizarem pela situação das crianças abandonadas. O bebê, pelo simples fato de estar ali, de existir, de demandar cuidados e dedicação, e de começar todo um processo de comunicação desencadeia profundas mudanças na família, qualquer que seja sua composição. O bebê nasce para a família e para o mundo, o homem e a mulher nascem (ou renascem, a cada novo filho) como pai e mãe.
Denise tinha acabado de romper um namoro de quase três anos com Paulo. Uma relação cheia de altos e baixos, tapas e abraços, brigavam muito por nada, o que gerava muito sofrimento e frustração. Um mês depois do rompimento, Denise descobriu que estava grávida. Procurou Paulo, acabaram reatando e resolveram morar juntos. Com seis meses de gestação, o parto prematuro. Erick nasceu com problemas respiratórios graves. Crises sucessivas: rompimento de namoro, decisão de morar juntos em função do filho imprevisto, parto prematuro, bebê correndo risco de vida. No meio da turbulência, novas brigas e grandes revisões: a própria situação de Erick, brigando sério para viver, em meio a sofrimentos reais, e não fabricados como pretexto estimularam Denise e Paulo a pararem para pensar em como estavam vivendo a própria vida. Tempestades verdadeiras desmascaram as tempestades em copos d’água.
Para muitas crianças, nem tudo são flores na época do nascimento. Há caminhos de vida que começam cheios de obstáculos a serem enfrentados. Os pequenos guerreiros que ficam semanas ou meses internados nas UTIs neonatais são bons exemplos disto. Muitas vezes oscilando entre a vida e a morte, os prematuros em estado grave desenvolvem desde cedo este espírito de luta pela própria vida e toda a família entra em crise. É comum que os pais se sintam culpados pelo nascimento prematuro ou pelas doenças e problemas da criança. Este sentimento de culpa combinado com o medo da perda faz com que muitos pais tenham medo do contato com o bebê na UTI: a barreira dos fios dos aparelhos e da própria incubadora constrange alguns pais; o aspecto frágil do filho os assusta, a presença de uma equipe em permanente vigilância lhes tira a espontaneidade.
Nas UTIs neonatais em que a equipe presta assistência mais ampla, cuidando não só do bebê em estado grave, mas também da família em crise, é permitida a entrada dos pais na maior parte do tempo e, ocasionalmente, dos irmãos do bebê para que tenham a oportunidade de conhecê-lo e entrar em contato com ele. A observação dessas situações mostra o poder de influência das crianças pequenas no estado emocional dos pais. Quando entram na UTI, as crianças não costumam se chocar como os pais; mostram muita curiosidade pelo irmãozinho e gostam da idéia de tocá-lo, pelas aberturas da incubadora. Estes gestos espontâneos, sensíveis ajudam os próprios pais a superar a barreira da culpa e do medo. Ao verem os outros filhos tocarem o irmão e manifestarem carinho e curiosidade, sentem-se mais encorajados a fazer o mesmo. São pequenos gestos com grandes significados: mesmo com o risco de perder, vale a pena se ligar com amor.
Irene e Leandro estão exaustos, ambos com olheiras e bastante irritadiços. Fábio, com um ano e meio, é uma criança hiperativa como poucas. É o primeiro filho de Irene e o terceiro de Leandro, os dois do seu primeiro casamento já passam dos vinte anos. Não tem mais paciência para "aturar criança pequena" e, embora quase não participe dos cuidados com o filho, não consegue dormir direito com os gritos estridentes de Fábio que acorda pelo menos três vezes por noite e com as reclamações da mulher pela sua falta de colaboração.
Diz Irene que, desde a época da gestação, o menino não sossegava. Recém-nascido, chorava demais e era difícil de acalmar; acostumou-se a dormir embalado ao colo; assim que o colocava no berço, despertava chorando. Até hoje, o processo de adormecê-lo consome algumas horas. Durante o dia, não pára quieto, quer mexer em tudo, anda pela casa toda e tenta escalar os móveis, numa agitação permanente.
Leandro, com os filhos já crescidos, não desejava ter mais um. Mas a maternidade fazia parte dos sonhos de Irene. Quando os dois se conheceram, a paixão e as afinidades falaram mais alto do que a diferença de idade e de projetos de vida. Foram três anos de convívio intensamente prazeroso, em que saíam sozinhos ou em companhia dos amigos quase todas as noites. Embora soubessem que, com um bebê em casa, haveria mudanças e restrições na vida social, não esperavam chegar ao auge da exaustão e da irritabilidade, com babás que não agüentam ficar com Fábio mais do que alguns meses e sem familiares dispostos a lidar com uma criança hiperativa.
Os pais influenciam a conduta da criança, mas as características da criança (seu temperamento, as estratégias de relação que desenvolve, etc) também influenciam os pais e outros familiares. Em situações como essa, a criança é agente de mudanças catastróficas no equilíbrio do casal, colocando desafios especiais para o convívio.
Quando Sílvio chega do trabalho, corre para ver "a princesa" Betina, sua filha de quatro anos. Abraça-a, pergunta se ele é seu príncipe. Betina se derrete em beijos e abraços, agarrada ao pai. Débora se ressente, acha exagerada essa festa entre pai e filha. Também é muito agarrada à Betina, mas não gosta de ver Sílvio entrando em casa e falando com ela sempre depois de estar com a menina. Betina gosta de se enfeitar para o pai, quer usar os batons e os perfumes da mãe: o cenário edípico está montado em mão dupla, pois Sílvio está muito mais sedutor com a filha do que com a mulher. O casal sai muito pouco, tem dificuldade de encontrar alguém confiável para tomar conta da menina à noite ou nos fins de semana.
As limitações não se restringem às atividades sociais: também a vida sexual do casal ficou extremamente empobrecida, pela preocupação de que Betina possa "precisar de alguma coisa". A porta do quarto permanece aberta e, de fato, a menina acorda de madrugada e se instala no meio de pai e mãe. Débora faz tímidas tentativas de levar a filha de volta ao quarto, mas Sílvio fica com pena e prefere que a menina permaneça entre eles. Betina percebe a situação e "joga charme" para o pai, dizendo que adora dormir agarradinha com ele. A criança, quando percebe este espaço aberto, entra no jogo com muita satisfação, pois entrevê a realização do sonho de ter pai e mãe inteiramente disponíveis para ela. É um sonho gratificante, porém nocivo, pois dificulta o desenvolvimento da autonomia e da percepção (frustrante, porém necessária) de que ela não é o centro do universo.
Para muitos casais, a chegada do filho os transforma em pai e mãe e pouco sobra do homem e da mulher. Torna-se difícil a mescla dessas diferentes funções na vida do dia a dia. É comum que o potencial de sedução, a carência e a frustração se canalizem no contato com os filhos. Isto pode passar de uma geração a outra: a percepção que o homem e a mulher tiveram de seus próprios pais como casais não erotizados exerce uma influência importante na maneira como viverão a própria sexualidade, ao entrarem no caminho da maternidade e da paternidade. Sílvio e Débora se impuseram grandes restrições na própria sensualidade, em especial após o nascimento da menina. Neste casal pouco erotizado, é possível que a necessária desilusão das fantasias edípicas não aconteça, e Betina continue sendo a "princesinha do papai", ocupando o lugar da mãe e aperfeiçoando suas estratégias de obter poder pela sedução.
O cenário da casa de Joel, Sheila e seus três filhos é de guerra permanente. Joel tem temperamento explosivo, qualquer coisa vira motivo de briga e, então, grita, xinga e deprecia Sheila. Esta, por sua vez, transforma tristeza e mágoa em raiva e rancor, devolvendo os xingamentos e ameaçando sumir de casa. Os três meninos também brigam muito entre si, os dois maiores formando uma aliança contra o menor, de seis anos, excluindo-o das brincadeiras e mexendo em seus brinquedos preferidos. Quando isto acontece, chora e pede ajuda para enfrentar os "irmãos grandes". Os pais castigam e batem muito nos filhos, pelas brigas incessantes entre eles e pela falta de educação na mesa de jantar. As brigas familiares também acontecem quando os meninos disputam o lugar preferido no sofá e no banco do carro. A gritaria é geral e o clima é de intenso mal-estar e irritabilidade.
Diogo, o de seis anos, é o que mais tenta facilitar acordos entre os "adversários". Embora também fique enraivecido, é muito sensível, desenvolveu uma percepção bastante acurada do circuito das brigas e, em algumas ocasiões, intervém pelo confronto e por sugestões que resultariam em melhor convívio. Diz para os pais coisas do tipo: "Não entendo por que vocês nos deixam de castigo quando estamos brigando. Vocês também brigam sem parar e ficam se xingando, igualzinho à gente. Só que nós não podemos deixar vocês de castigo!"; "Mãe, já ouvi, não precisa gritar comigo!"; "Pai, se você deixasse a mamãe acabar de falar, e fosse bem educado com ela, vocês não brigariam tanto".

O sofrimento de Diogo é intenso, pelo medo de que os pais se separem. Assumiu o cargo de diplomata da família, procurando ajudar na reconciliação das brigas do casal, juntando a mão do pai com a da mãe, sentando-se entre os dois e puxando conversa sobre amenidades para aliviar o clima hostil. Há ocasiões em que as intervenções de Diogo são bem sucedidas e os pais param para refletir no que estão fazendo um com o outro e com os filhos. Mas é evidente que isto ainda é pouco para modificar estruturas tão profundas como a compulsão à briga. Sobretudo porque, aos seis anos, é uma carga pesada e indevida atuar como agente reconciliador, embora o que diga e faça possa até facilitar lampejos de reflexão em seus pais.
É provável que Diogo continue desenvolvendo sua sensibilidade para captar as sutilezas dos circuitos de comunicação e aprimorar a qualidade de suas intervenções para tentar harmonizar as divergências. É possível que isto venha a ser uma característica importante até mesmo em seu trabalho. Mesmo vivendo num clima de muitas brigas e profundas hostilidades, Diogo poderá desenvolver sua amorosidade e sua capacidade de compreensão e compaixão. Há muitas crianças que acabam crescendo bem, apesar das dificuldades dos pais ou do contexto em que vivem. É a "resiliência" – a capacidade de enfrentar adversidades e a força de vencer os obstáculos.
Silvana, desde muito pequena, mostrava-se retraída no contato com as pessoas e era considerada como um "bebê sério" que pouco sorria. Com dois anos, sofreu um acidente, teve que se submeter a uma cirurgia de urgência e ficou duas semanas hospitalizada. Quando começou o tratamento psicoterápico, aos quatro anos, estava cheia de medos e intensamente arredia ao contato com crianças e adultos, conhecidos e desconhecidos. Pais e avós se preocupavam e se sentiam constrangidos com tanta retração, já que Silvana sequer respondia a um "bom-dia", não permitia que ninguém a abraçasse e a beijasse, ia às festas, mas não participava das brincadeiras e ficava zangada quando alguém a elogiava.
Sua irmã, um ano mais nova, é uma criança alegre e extremamente sociável. Encanta as pessoas com seu sorriso, relaciona-se bem com crianças e adultos e apresenta apenas os medos normais de sua idade. Em conseqüência disso, as pessoas falam com Clarisse de modo mais aberto e afetuoso do que a Silvana. As duas irmãs se dão bem, gostam de brincar juntas, e repartem o mesmo quarto sem maiores problemas. Avaliando o potencial de auxílio terapêutico desse relacionamento, algumas consultas foram programadas incluindo Clarisse. As brincadeiras entre a terapeuta e as duas meninas giravam em torno de temas sociais tais como festas na casa de bonecas, teatro de fantoches, passeios e viagens em grupos. Com isto, as questões da retração, da vergonha e do medo puderam ser trabalhados em maior profundidade. A presença de Clarisse com sua facilidade de contato ajudou imensamente o trabalho terapêutico de Silvana.
Em certa ocasião, o pai ficou muito irritado quando Silvana se recusou a lhe dar um beijo de despedida, pois viajaria a trabalho por uma semana. Repreendeu a menina, que fez cara de zanga e de mágoa e foi para o quarto chorando. Clarisse ficou aflita e disse ao pai: "Você não entende que ela tem vergonha de beijo?", e foi correndo consolar a irmã.
A relação entre os irmãos tem um potencial de influência recíproca muito grande, que precisa ser mais estudado e explorado. Mesmo com apenas dois ou três anos, as crianças apresentam capacidade de empatia, solidariedade, capacidade de compreensão e de ajuda. Isto se torna especialmente evidente quando os adultos estão sintonizados com a linguagem dos sentimentos e procuram facilitar sua expressão nas cenas do cotidiano familiar.
As várias cenas apresentadas procuraram mostrar, sob vários ângulos, o papel da criança como agente de mudança na família. Pelo simples fato de nascerem, com suas características e suas necessidades, mexem profundamente na afetividade dos pais e de outros familiares. Na medida em que, ainda nos primeiros anos de vida, desenvolvem a percepção do que acontece nas interações, montam suas estratégias de conduta, buscando o caminho da satisfação de suas necessidades, inclusive a de obter poder; com o desdobramento da sensibilidade e da curiosidade, captam matizes mais refinados e respondem a eles com clareza e espontaneidade.

Infelizmente, o processo educacional tende a abafar progressivamente essa naturalidade com a censura e a crítica a sentimentos e não apenas a determinadas condutas inaceitáveis. Deste modo, as crianças correm o risco de embutirem e até mesmo de embotarem o que sentem para se tornarem "pessoas adequadas", preenchendo as expectativas alheias, porém limitadas em seu potencial de sensibilidade.
Felizmente, isto nem sempre acontece: quando a família, qualquer que seja sua composição, cuida do respeito pelo que é percebido e sentido, desenvolve-se a capacidade de escuta sensível e se abre o espaço de trocas e de descobertas que faz com que o crescimento das crianças acarrete também o crescimento dos adultos, em relações familiares em que predominam a cumplicidade e a solidariedade. Da mesma forma, a equipe escolar também pode atuar no sentido de desenvolver, desde os primeiros anos de vida, a capacidade de empatia, ampliando os recursos de comunicação que permitem o desenvolvimento da "inteligência emocional": a clareza de expressão, a criatividade para gerar saídas para impasses e conflitos, o controle da impulsividade, a canalização da agressividade para fins construtivos, e a percepção da própria capacidade para tomar iniciativas de mudanças significativas nos relacionamentos.
Com isso, o potencial natural de crianças e jovens como agentes de mudança no cenário familiar pode se expandir para outros cenários de convívio, como a escola e a comunidade, possibilitando fortalecer as raízes da cidadania participativa.

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